Quase no lugar do espanto

“Ando cada vez mais intrigado com o lugar para onde vão as coisas que vivemos. Deve por certo haver algures algum registo, um filme detalhado. Que isto não é só isto, senão bastava-se. O meu pai, por exemplo, continua a viver em mim. O que mostra bem a imortalidade das almas. O que eu não percebi talvez fosse para não ser percebido. O que vivi talvez fosse para não ter sido vivido. O que matei levo-o comigo fechado dentro de um saco. Sem poder ter a certeza. Se a tivesse dava-a de bom gosto a quem ma pedisse. Eu não nasci assim louco. Eu lentamente adoeci.

É urgente elevar a pessoa à posição do espanto. É daí que se abre o mundo. Qualquer coisa possui em si o mistério de tudo e a nossa distância vai daqui para ali, e volta. Há uma frase por escrever da qual esqueci as palavras e a gramática. Uma frase que junte coisas separadas, as nuvens e as suas sombras, animais fabulosos a sensíveis plantas, breves recados a fatais desenlaces. Uma frase é um laço apertado por um verbo. Eu conjugo verbos como quem se encontra diante de um precipício. É a morte por todo o lado espelhada que me faz escrever a frase. Entretanto deparo diante de mim com uma parede falsa. Os meus olhos escondem tudo o que descobrem por detrás dela. Uma parede não basta para fazer uma casa. Uma casa é uma concha. Uma concha é uma casa. Uma concha abre-se como uma porta. Uma porta que conduz de uma prisão a outra. Há uma prisão inexpugnável. Eu nunca serei tu. Deve ser esta a frase que pedia para ser escrita aguardando pacientemente. Mas quem saberá a verdade se o que nos aproxima é o que nos mantém afastados? Em primeiro lugar o geométrico espaço, em segundo o tempo que nunca se atrasa. É assim, sempre assim. Prosseguimos de segredo em segredo as mãos atadas à cabeça. Foi sempre assim estar aqui, nesta existência extrema.

Quase, é uma palavra notável. Todas as pessoas deviam ter por nome próprio quase. Eu sou quase, tu és quase, ele é quase, nós somos quase. Quase qualquer coisa que não chega a ser quase. Uma equação quase perfeita. Um número quase redondo que só existe dentro das nossas cabeças ligadas por fios primorosos. Fios de aço que amarram a loucura e a mantêm obediente. Não pretendas ser mais. As lágrimas que te escorrem pela cara desenham traços de temperatura variável. Continuam a surgir frases por escrever, amores inacabados. O amor é sequioso como uma planta. O melhor é a água. Não há outra maneira. A felicidade é coisa que acontece tarde. Da qual só se tem notícia depois de ter sido. Quando alguém clama: sou feliz, está a preparar-se para a desgraça. Imensas são as coisas que só existem no tempo passado. Não há vagas, quer no inferno, quer no paraíso. Suceder já quer dizer sucedido, porque triunfar é um verbo a morrer. Há em mim qualquer um que tem saudades de si. Saudades imperiosas, bruscas, inevitáveis. Continuo a ignorar para onde foi o que fui, em que casas acordam as pessoas que amei. Dói quase. Assim, sempre assim. Uma espécie de distância que não pode ser percorrida.”

Pedro Paixão, “É preciso elevar a pessoa ao lugar do espanto”

5 comentários a “Quase no lugar do espanto

  1. É quase assustador ver o que somos,ou o que pensamos que somos,dito nas palavras de outra pessoa,coisas que não conseguimos transpôr em palavras nossas.Assim como nas notas de uma música,por exemplo.Vem-me acontecendo isso desde “A noiva judia”.Talvez uma pessoa nunca seja assim tão especial ou única,por muito que o deseje.Talvez isto que disse não faça sentido sequer.Obrigado por tornar tangível o mistério que nos habita,nem que seja porque quero acreditar que o faz.

    • Hoje… enquanto preparava aulas de Literatura Portuguesa… fui olhando para o FB… para as frases curtas e piadas de amigos… até que… uma amiga, colega, escolheu o dia de hoje para colocar textos no FB que… me agarraram pelos olhos e entraram onde eu julgava impossível. Um deles foi este. Outro, também de Pedro Paixão, “Só tu me fazes dizer as coisas que te digo.”teve a capacidade de me abanar-surpreender-emocionar-fazer concordar-querer mais e perguntar… como é que ele sabe e diz assim, sem véus nem pudores, estas coisas que julgávamos que só se passavam connosco? (A inocência perdura…) 🙂

      Textos tão… tão… simples e belos… que mordiscam.. mordem mesmo… o nosso sentir.
      Gostava que houvesse palavrões bonitos… para juntar o espanto à vertigem de ler textos assim. São textos soluçadamente belos… e estupidamente, também… porque escancaram as portas que tinhamos trancadas! Ora que p****! E agora? O que faço com o resto do meu dia e esta vontade de… de… de dizer… de não calar…
      Obrigada por estas partilhas. Obrigada ao Pedro Paixão por escrever assim. (Tentei contactá-lo através de mensagem no site, mas… a minha mensagem não era enviada…pena).

      Sei que hoje excertos da escrita de Pedro Paixão soltaram em mim um passarito amordaçado…
      Deixá-lo cantar… seja fado ou silêncio. (Sabe que também se canta em silêncio?! Sabe, claro…)

      Ni

  2. Habito um novo lugar; informe ,intangível. Movo-me na lentidão ,incrédula, que a morte de um filho nos deixa.
    Pergunto-me, também, onde ficam os registos, para além do que se cola a nós, perfurando-nos a carne e circulando na redoma dos pensamentos, pergunto-me se estas valsas com a vida e com a morte se vão esvaindo, e se o desenho dos nossos dias fica, em esboço, no espaço.
    Enquanto integro os inomináveis, dou a mão , dou-lhe a mão que agarra as memórias.
    Grata pela sua lucidez de diamante.

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